A Teoria da Teia Urbana
Nikos A. Salingaros
Department of Applied Mathematics, University of Texas at San Antonio, San Antonio, Texas 78249, USA.
E-mail: salingar@sphere.math.utsa.edu
A presente versão em português é a tradução por Lívia Salomão Piccinini do texto on-line
originalmente publicado no Journal of Urban Design, Volume 3 (1998), paginas 53-71. ©
Taylor & Francis Limited. Uma versão eletrônica anterior foi publicada (1997) por
Resource for Urban Design Information (RUDI), e uma versão em finlandês foi
publicada (2000) pelo Tampere University of Technology, Institute of Urban Planning,
Publication n° 33.
Resumo
Este artigo identifica os processos fundamentais que estão por trás do desenho
urbano. Regras são derivadas a partir dos princípios conectores da teoria da
complexidade, do reconhecimento de padrões e da inteligência artificial. Todo
assentamento humano pode ser decomposto em nós de atividades humanas e nas
suas interconexões. As conexões são então tratadas como problemas matemáticos
(aqui de uma maneira qualitativa). O desenho urbano tem mais sucesso quando ele
estabelece um certo número de conexões entre nós de atividades. A matemática
depende do estabelecimento de relações entre idéias, sendo esta habilidade um
componente central na inteligência dos seres humanos. A criação do ambiente
construído é dirigida por forças análogas àquelas que nos orientam a fazer
matemática.
• Introdução
• Os princípios estruturais da teia urbana
• As conexões na arquitetura e no desenho urbano
Conectando nós de atividade humana
Os caminhos conectivos são múltiplos e irregulares
A estabilidade contra a perda de conexões
Evitando canais congestionados
O “modelo de brinquedo” da biologia evolutiva
• A complexidade organizada
• Algumas aplicações da teoria
Caminhos conectam nós complementares
Escalas humanas e conexões contínuas
Hierarquia e fractais
O sucesso das áreas de vendas e das praças
O caminho como o limite de uma região
Prioridade para a criação de caminhos de pedestres
Garantindo a funcionalidade de caminhos individuais
O padrão de vias como o princípio organizador
Descontinuidades necessárias e separação
1
• Conclusão
Introdução
A arquitetura e o desenho urbano têm até aqui resistido à formulação científica, em
parte devido à extrema complexidade de ambos. As mesmas razões são as que atrasaram as
bases científicas da medicina, que até muito recentemente, era baseada tanto na superstição
quanto na ciência. Esforços feitos no passado, como tentativas de moldar o planejamento
urbano em termos teóricos — através da identificação dos processos que deram origem às
formas observadas — têm tido pouco impacto no desenvolvimento real. Existem, no
entanto, três tentativas recentes e notáveis: (1) o trabalho pioneiro de Christopher
Alexander (Alexander, 1964; 1965; 1998; Alexander, Ishikawa et. al., 1977; Alexander,
Neis et. al., 1987) que provê a espinha dorsal deste artigo; (2) a consideração dos padrões
urbanos como fractais o que enfatiza as ligações entre suas hierarquias e microestruturas
(Batty e Longley, 1994; Batty e Xie, 1996) e (3) a formulação das questões urbanas em
termos de relações e movimentos que esclarece a respeito das forças que governam o
crescimento da cidade (Hillier, 1996; Hillier e Hanson, 1984). Aqui vamos focalizar nos
processos conectivos como bases da teia urbana.
Um componente central do intelecto humano é a habilidade de estabelecer
conexões. As conexões entre as idéias permitem um melhor entendimento da natureza.
Reconhecer padrões que estão escondidos do observador casual é a chave para o
desenvolvimento científico. Estudos neurológicos mostram que a maior parte do cérebro
está envolvida com a percepção visual, o que sugere que a inteligência tenha se
desenvolvido para apoiar o processo perceptivo (Fischer e Firschein, 1987). A habilidade
para estabelecer conexões se aplica tanto aos processos visuais quanto aos processos menos
óbvios, mais abstratos, e é pelo desenvolvimento deste último que a humanidade tem
conseguido dominar todas as outras espécies animais. Vou fazer neste trabalho uma
analogia entre as conexões mentais e as conexões entre elementos urbanos que dão origem
a uma cidade ou a uma parte da paisagem urbana.
A teia urbana é uma estrutura organizativa complexa que existe principalmente no
espaço entre as construções (Gehl,1987). Cada construção comporta ou abriga um ou mais
nós de atividades humanas. Os nós externos variam desde totalmente expostos a graus
diferenciados de fechamento parcial. A teia urbana consiste de todos os elementos
exteriores e conectivos, tais como áreas de pedestres e áreas verdes, muros, caminhos de
pedestres e ruas, com capacidades crescentes que variam desde uma ciclovia até as vias
expressas. Observações empíricas mostram que quanto mais forte for a conexão, e quanto
mais base tiver a teia, mais vida terá a cidade (Alexander, 1965; Gehl, 1987).
A exposição começa colocando três princípios gerais. Eles são desenvolvidos como
uma teoria da teia urbana, a qual provê regras práticas para aplicações. A necessidade de
diferentes tipos de conexões é discutida. Uma explicação matemática sobre a irregularidade
das conexões mostra porque caminhos retos, que se apresentam regulares no projeto, são
usualmente inadequados e não funcionam por outras razões (Figura 1). Um modelo usado
na biologia molecular e que agrupa pares de elementos para conseguir ligações é revisto a
seguir, e demonstra-se que a teia urbana não pode existir sem um número mínimo (e muito
grande) de conexões.
2
Figura 1. Tanto a localização dos nós quanto as conexões entre eles devem ser otimizados
para a atividade humana: (a) quatro nós localizados de tal forma que parecem
“regulares” olhados de cima, mas essa regularidade impede tudo o que for além de
conexões mínimas. (b) múltipla conectividade entre os mesmos quatro nós vistos em planta.
Em seguida, é examinado como a complexidade organizada é alcançada na cidade.
Sem suficiente complexidade, a cidade é morta; se há complexidade sem suficiente
organização, a cidade se torna caótica e impossível de se viver. Aumentar o grau de
complexidade organizada aparece como um dos principais caminhos tomados pela
humanidade através dos tempos. Uma das principais idéias reforçadas neste artigo é de que
a cidade imita os processos humanos do pensamento, no sentido de que ambos processos
dependem do estabelecimento de conexões. Esta analogia permite tornar as razões pelas
quais nós construímos coisas complexas menos misteriosas.
A segunda metade deste artigo vai listar algumas aplicações da teoria. As ruas e os
caminhos são conexões da teia e nós examinamos sua estrutura contínua e sua hierarquia.
Sugestões e conselhos práticos são dados aos planejadores sobre como construir melhores
comunidades. Há coisas que podem ser feitas para regenerar comunidades existentes com
um mínimo de esforço. É discutido, por exemplo, como o sucesso de uma área de comércio
pode ser aumentado. Finalmente o uso dos limites urbanos é também discutido. Há muitas
situações onde é preciso inibir ou controlar as conexões ao invés de estabelecê-las em todas
as escalas. Numa cidade saudável é necessário desconectar duas regiões que irão causar mal
uma à outra.
3
Os princípios estruturais da teia urbana
Os processos que geram a teia urbana podem ser resumidos em termos de três
princípios. Embora não sejam exaustivos esses princípios são inteiramente gerais, e este
artigo vai descrever como eles podem ser traduzidos em regras práticas de desenho, para
situações específicas. Tudo tem a ver com conexões e com a topologia daquelas conexões.
Os três princípios podem ser colocados da seguinte forma:
1) Nós: a teia urbana é ancorada em nós de atividades humanas cuja interconexão
constitui a teia. Há distintos tipos de nós: casa, parque, trabalho, loja, restaurante,
igreja, etc. Elementos naturais e arquitetônicos servem para reforçar os nós de
atividades humanas e seus caminhos. A teia determina o espaçamento e o projeto
das construções, e não vice-versa. Os nós que estão muito afastados uns dos outros
não podem ser conectados por caminhos de pedestres.
2) Conexões: pares de conexões se formam entre nós complementares, e não entre nós
semelhantes. Os caminhos de pedestres consistem de pequenos pedaços retos entre
nós; e nenhuma dessas secções deve exceder um certo comprimento máximo. Para
acomodar múltiplas conexões entre dois pontos, alguns caminhos devem ser
necessariamente curvos ou irregulares. Muitas conexões coincidentes congestionam
a capacidade do canal de acesso. Caminhos de sucesso são definidos pelas bordas
existentes entre regiões planas contrastantes e se formam juntos aos limites destas.
3) Hierarquia: quando lhe é permitido, a teia urbana se auto-organiza criando uma
hierarquia ordenada de conexões em vários diferentes níveis da escala. Ela se torna
multiplamente conectada, mas não caótica. O processo de organização segue uma
ordem precisa: começando pela menor escala (caminhos de pedestres) e
progredindo para escalas maiores (vias de maior capacidade). Se algum nível
conectivo estiver faltando, a teia é patológica. A hierarquia raramente pode ser
estabelecida imediatamente.
Esses princípios são sugeridos a partir de estudos matemáticos, mas seu uso aqui é mais
específico do que no trabalho de autores precedentes (Lynch, 1960). Como resultado, as
conclusões são mais fortes e as soluções permitidas são mais restritas. O crescimento
urbano tem seguido regras semelhantes ao longo da história. No entanto neste século o
planejamento incorporou regras que são de muitas maneiras opostas aos princípios
colocados acima. Eu vou mostrar como a adoção de estilos de desenho arbitrários, que
contradizem princípios matemáticos relevantes, destroem a teia urbana (Batty e Longley,
1994).
Conexões na arquitetura e no desenho urbano
A arquitetura combina elementos estruturais e espaços para conseguir coesão. As
conexões do desenho urbano juntam três distintos tipos de elementos uns com os outros:
elementos naturais, nós de atividades humanas e elementos arquitetônicos. Exemplos de
elementos naturais incluem as margens de um rio, um grupo de árvores, uma grande pedra
ou uma faixa de grama. As atividades humanas definem os nós, que podem ser o local de
trabalho, uma residência, a frente de uma loja ou um lugarzinho para sentar e tomar uma
4
xícara de café. Os elementos arquitetônicos incluem tudo o que os humanos constroem para
conectar os elementos naturais e reforçar seus nós de atividades.
Conectando os nós de atividade humana
Os nós urbanos não são completamente definidos pelas estruturas do tipo dos
prédios proeminentes ou monumentos. Eles podem ser leves e modestos como uma
carrocinha de cachorro-quente ou um banco na sombra. Os nós devem atrair as pessoas por
alguma razão, então um edifício, ou um monumento, será um nó somente se nele também
houver uma atividade bem definida. Edifícios e monumentos proeminentes e que também
propiciam um nó para as atividades humanas agem como focos para caminhos, e fazem
sucesso. Em contraposição, locais que não reforçam a atividade humana não fazem sucesso,
isolando-se da teia urbana.
Uma diferenciação deve ser feita entre conexões visuais e os caminhos que
conectam o movimento físico das pessoas. Como foi enfatizado por Kevin Lynch (1960) e
desenvolvido mais tarde por Bill Hillier (Hillier, 1996; Hillier e Hanson, 1984) as conexões
visuais são necessárias para a orientação e para criar um quadro coerente de um contexto
urbano considerado. No entanto, devido ao fato de que nem sempre eles coincidem com os
caminhos e as vias, eles não são os principais focos deste artigo. A interdependência entre
conexões visuais e caminhos, é altamente complexa, e será tratada em outro lugar.
O número e os tipos de conexões entre nós de atividades humanas são (ou deveriam ser)
incrivelmente grandes. Desde los anos 40 os planejadores urbanos têm seguido regras cujo
objetivo é criar um projeto com um alto grau de regularidade geométrica, ao menos no
centro urbano (Alexander, 1965; Batty e Longley, 1994; Gehl, 1987). Isso está baseado,
freqüentemente, em idéias estilísticas arbitrárias que frustram tanto os nós quanto as
conexões. Ao se concentrarem na simplicidade visual das formas em geral, os nós de
atividade humana são ignorados até que seja tarde demais para defini-los propriamente.
Como resultado, as atividades humanas têm que ser ajustadas a uma base pré-existente, já
construída, que não pode sequer ter a ilusão de acomodá-las.
Os elementos arquitetônicos conectam-se aos outros a certas distâncias visuais
através de simetrias, similaridade e formas intermediárias (Salingaros, 1995). Há, no
entanto, uma diferença entre conexões arquitetônicas e conexões humanas. As conexões
funcionais entre nós de atividades humanas não são tolerantes a tratamentos em termos das
simetrias porque esses padrões são altamente complexos. Por esta razão, elas tendem a ser
ignorados sempre que uma cidade é planejada em termos visuais. É a complexidade
organizada de uma teia urbana em funcionamento que determina a sua forma geral, e não o
caminho inverso (veja Figura 1). A organização combina múltipla conectividade com um
ordenamento hierárquico. Uma parte da teia urbana pode parecer organizada, mas ser
desconectada. Por outro lado, outra parte pode parecer desorganizada no projeto, e mesmo
assim ser altamente conectada e funcional.
Os caminhos conectores são múltiplos e irregulares.
Cada elemento no contexto urbano tem um significado desde que se relacione às
atividades humanas. Um complexo processo de organização conecta os diferentes nós da
teia urbana. As conexões permitem que se alcance facilmente qualquer ponto,
5